DISCUSSÕES ÉTICAS ATUAIS SOBRE O ABORTO, A EUTANÁSIA E O SUICÍDIO E A VALORIZAÇÃO DA VIDA
Guilherme Augusto Portugal[1]
PALAVRAS- CHAVES: Ética, Aborto, Eutanásia, Suicídio, Dignidade Humana.
RESUMO: O presente artigo pretende discorrer questões atuais que esbarram no campo ético. Elaborando uma análise pró e contra ao que concerne à temática do aborto, da eutanásia e do suicídio. Em entrelaçamento de argumentações tão diversas propor uma reflexão ética para a atualidade em defesa da vida no seu decurso natural. Também tratar-se-á das implicações sociais, econômicas e políticas que conduzem a um reducionismo questões tão complexas. Mesmo não chegando a um consenso, visto que isso é utópico diante de posicionamentos tão discrepantes, levanta-se a inviolabilidade da vida desde sua concepção até seu declínio natural.
1 INTRODUÇÃO
No contexto atual inúmeras questões éticas são levantadas e colocadas em confronto. O presente artigo pretende discorrer precisamente sobre três dos maiores questionamentos da sociedade do século XXI. A saber: o aborto, a eutanásia e o suicídio.
Esses temas são a todo momento discutidos, e assim, apresentados os mais diversos posicionamentos e não se chega a um consenso. Além das discordâncias entre religião e ciência, entre outros, dentro dos mesmos ramos também existem divergências sobre a licitude do aborto e da eutanásia.
A questão do suicídio deve ser avaliada sob dois aspectos; o da interioridade no qual a pessoa perde o sentido da vida e, como um fato social, em que procura-se respostas em que rumo toma essa sociedade que conduz os indivíduos ao absurdo da vida e a perda de sentido da mesma.
No entanto, o que precisa ser levado em conta é a defesa e valorização da vida. Vida que dever ser cuidada e preservada desde sua concepção até seu declínio natural.
Não discussões meramente econômicas e políticas, embasada e legalizadas pelo poder jurídico, mas principalmente no âmbito da ética, que conduz o ser humano para o bem agir em vista da dignidade da vida em sua integridade.
2 A PROBLEMATICA DO ABORTO, EUTANÁSIA E SUICÍDIO
2.1 O ABORTO E OS EXPERIMENTOS COM CÉLULAS TRONCO
O aborto é uma questão que causa muitas discussões no meio social ao longo de toda história em muitos povos. Hoje depara-se com a nova situação, as técnicas do aborto desenvolvem-se de tal maneira que o controle público se torna cada faz mais difícil. Porém, a legislação pública sempre precisa proteger a vida desde antes de seu nascimento. (RAMPAZZO, 2014, p. 190).
Os posicionamentos contrários e a favor entram em choque constantemente. Portanto, pretende-se aqui fazer um caminho mostrando as argumentações dos dois lados, e o que vários seguimentos sociais oferecem como reflexão.
Com os estudos e utilizações das células-tronco de embriões a questão do aborto acentua-se ainda mais, entrando na controversa licitude moral do aborto provocado.
Nesse sentido apresentam-se algumas posições sobre o assunto em questão:
…a) segundo alguns, o aborto provocado é sempre, em qualquer circunstância, um ato moralmente inadmissível e não deveria ser permitido pela lei; b) segundo outros, o aborto é um ato moralmente discutível, mas existem circunstâncias (por exemplo, em caso de estupro ou de gravíssima anomalia confirmada do feto) nas quais pode ser justificado e, portanto, admitido, pelo menos, não punido pela lei; c) para outros ainda o aborto é um ato moralmente admissível e consideram correto ser ele regulado pela lei; d) enfim, há quem afirme não apenas que o aborto é uma ato moralmente lícito, mas também que cabe unicamente à esfera da livre opção da mulher, que a lei deve reconhecer sem impor vínculos ou condições. (NERI, 2004, p. 166).
A diversidade de opiniões e posicionamentos referentes ao aborto e à utilização de embriões dificulta a elaboração de políticas públicas que sejam unanimemente partilhadas, principalmente nos países laicos e pluralistas. (NERI, 2004, p. 169).
É viável perceber que o problema do aborto não se limita a uma questão meramente jurídica e penal, ele ultrapassa essa dimensão. É necessário, principalmente, refletir no campo da ética o aborto e os experimentos com células-tronco, já que
Tanto abortistas como antiabortistas dão a impressão de que o aborto é simplesmente, ou acima de tudo, uma questão a ser solucionada por uma lei específica de um tipo ou de outro. Essa atitude representa um enfoque reducionista do problema. A dimensão legal tem a sua importância, mas é somente um aspecto, talvez não o mais importante: a raiz social do aborto exige soluções bem mais profundas e difíceis, como algumas medidas de política familiar, habitacional, sanitária e trabalhista. (…) é preciso distinguir entre o plano ético e o plano jurídico particularmente no que se refere ao direito penal. (RAMPAZZO, 2014, p, 191).
Nesse sentido é complexo encontrar uma resposta definitiva para o problema, haja vista que é preciso em determinadas situações escolher entre a vida do feto ou da mãe, e também pensar os casos de estupros que causam um trauma psíquico na mulher. Sem dúvidas é indispensável a valorização da vida em todos os seus âmbitos, mas as diversas questões atuais levam à dicotomia das opiniões e a uma conclusão fechada.
Montaigne[2] afirma que “Nunca duas pessoas julgaram uma mesma coisa da mesma maneira e é impossível observarem-se duas opiniões idênticas, não só de indivíduos diferentes mas ainda de um mesmo homem em dois momentos diversos.” (MONTAIGNE, 1980, p. 478).
Em torno de todas essas discussões propostas levanta-se a grande e primeira questão sobre o aborto. Quando e como é lícito ou não o aborto?
Na avaliação moral do aborto, há distinções entre o feto animado e o feto ainda não animado: particularmente a partir do século VII. O aborto do feto “sem alma” é considerado como comportamento grave, mas na sua gravidade é inferior à da eliminação do “feto com alma. (RAMPAZZO, 2014, p. 192).
Mas eis que nesse ponto surge o grande impasse: Quando é que se dá início a vida propriamente dita? Até mesmo as mais diversas religiões dominantes do mundo, divergem muito em suas posições. Para tanto, os posicionamentos das grandes religiões:
[a] religião judaica […] até quarenta dias eles [os embriões] são “como água”, e portanto não são titulares de direitos; nesse prazo, o aborto é permitido e até, quando ameaçada a saúde da mãe, obrigatório. […] para o islamismo o embrião é digno de certo grau de respeito e proteção desde o momento da concepção, mas atinge o status de pessoa somente no quarto mês de gestação, quando recebe a alma imortal. Diante dos benefícios esperados para a saúde das pessoas, os islâmicos consideram moralmente admissível retirar células dos embriões e até, com diversos cuidados, criar embriões para essa finalidade. […] o representante da Igreja Ortodoxa ocidental […] afirmou que sua religião não admite nenhum procedimento que possa pôr em risco a vida do embrião a partir do estágio de zigoto e, portanto, não é admissível a retirada de células nem do embrião nem do feto abortado, a menos que se trate de aborto espontâneo. […] a Igreja Católica opõe-se à retirada de células de embriões e de fetos abortados porque ambos os casos implicam uma cumplicidade direta ou indireta na interrupção de uma vida humana, para a qual a Igreja Católica reivindica uma proteção absoluta desde o momento da concepção. (NERI, 2004, p. 174-178 grifo nosso).
Os confrontos de ideias entre religiões, ciências e outros campos da sociedade nunca chegam a uma conclusão unificada, sendo esse um pensamento utópico. Cada seguimento e seus desdobramentos sempre irão posicionarem-se diante do seu ponto de partida e visão. Com essa questão surgem inúmeras outras, mas é necessário levar em conta, em qualquer circunstância, a valorização da vida. Assume-se que no caminho percorrido
A posição moral mais matizada atinge um ponto alto com Sanchez (1550-1610), que admite como “provavelmente lícito” o aborto do “feto não animado”, desde que haja razões muito especiais: violação carnal e perigo de vida para a mãe. (RAMPAZZO, 2014, p. 192).
Essa postura não determina uma aceitação e um regulamento final. Longe de um consenso, na questão do aborto, está a sociedade atual. Portanto, é muito difícil captar as tendências contrastantes existentes, sendo um tema tão complexo o aborto. Mas, faz-se extremamente necessário colocar em questão se é lícito ou não praticar o aborto, e como lidar com esse problema em situações concretas e complexas.
2.2 EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA
Outro ponto necessário para a discussão em voga é a eutanásia, e também a distanásia e a ortotanásia. Antes de mais nada, faz-se necessário buscar significados para determinar tais nomes: “O termo Eutanásia origina-se do grego euthanatos, eu, significa bom; e thanatos, morte. Portanto, etimologicamente essa palavra designa uma boa morte; morte calma” (BARSA, 2002, vol.6, apud CUNHA, 2016, p. 69). Atualmente o termo eutanásia indica a supressão indolor da vida, voluntariamente provocada, de quem sofre ou poderia vir a sofrer de modo insuportável. (RAMPAZZO, 2014, p. 205).
Pode-se ainda fazer uma distinção entre eutanásia positiva e negativa:
A eutanásia negativa se dá quando consciente e diretamente, é abreviada a vida pela suspensão de um tratamento a que o paciente tem direito, e a eutanásia positiva, quando são tomadas medidas diretas com o objetivo de dar fim à vida. […] Em ambos os casos existe uma decisão positiva contra a vida de outrem. (RAMPAZZO, 2014, p. 205-206).
Faz-se necessário designar outras duas situações nesse âmbito: a ortotanásia e a distanásia. “… ortotanásia significa “morte digna” (do grego thánatos, morte e orthos, correto, digno); e distanásia quer dizer “morte com dificuldade” (do grego thánatos, morte, e dys, mau estado, dificuldade)”. (RAMPAZZO, 2014, p. 206).
Determina-se, portanto, que a distanásia que é a morte lenta, com sofrimento – convergindo com a eutanásia apenas em seu conteúdo moral, ambas são eticamente inadequadas, e a ortotanásia, que adota cuidados prestados aos pacientes nos momentos finais de suas vidas. (CUNHA, 2016, p. 69).
Entende-se que na ortotanásia trata-se de morrer com dignidade, sanar os sofrimentos que uma doença irreversível pode causar; e na distanásia de prolongar desnecessária e desrespeitosamente o fim da vida, ocasionando uma vida sem consciência e sem liberdade (RAMPAZZO, 2014, p. 206),
Ainda pode-se distinguir:
… a eutanásia ativa – conduta deliberada de provocar a morte sem sofrimento do paciente, por fins humanitários (p. ex., utilização de uma injeção letal) –, a eutanásia passiva – quando a morte ocorre por omissão em se iniciar uma ação médica (p. ex., deixar de se acoplar um paciente em insuficiência respiratória ao ventilador artificial) – e eutanásia de duplo efeito – quando a morte é acelerada como consequência (sic) de ações médicas não visando ao êxito letal, mas sim o alívio do sofrimento de um paciente (p. ex., emprego de uma dose de morfina para dor que gera, secundariamente, depressão respiratória e o óbito). • Quanto ao consentimento do paciente: a eutanásia voluntária – a qual atende uma vontade expressa do doente, sendo, portanto, um sinônimo do suicídio assistido –, eutanásia involuntária – quando o ato é realizado contra a vontade do enfermo (o que é sinônimo de homicídio) – e eutanásia não voluntária – quando a morte é levada a cabo sem que se conheça a vontade do paciente. (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p. 858).
A eutanásia tem sido tema de grandes discussões no cenário mundial, a dicotomia entre direito à morte e direito à vida continua sem consenso. A evolução científica e tecnológica tem proporcionado situações inusitadas.
A aplicação de novas tecnologias à medicina trouxe em seu âmago todo um repertório de manutenção das funções biológicas, com amplas possibilidades para salvar um sem número de vidas. Neste âmbito, um dos elementos de destaque é a biotecnociência, capaz de ir ao encontro do “velho” desejo humano de vencer a morte. A aplicação irresponsável desta última situa-se no âmago da postura adotada por alguns médicos de manter artificialmente o enfermo moribundo com os sistemas orgânicos em funcionamento, por meio do emprego de toda a ciência e tecnologia disponíveis, com a obtenção de uma nova “vitória” sobre a morte a cada momento, a despeito de todo o sofrimento causado. Sobre isso exatamente se assenta o conceito de distanásia (δις = dificuldade, privação // δισθανη ´ς = adjetivo: que morre duas vezes; no latim, dis dá idéia de separação e negação), palavra inicialmente proposta por Morcache, em 1904, que pode ser entendida como a manutenção da vida por meio de tratamentos desproporcionais – ou seja, como sinônimo de obstinação terapêutica – levando a um processo de morrer prolongado e com sofrimento físico ou psicológico. (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p. 858).
A repulsa recorrente da dor e do sofrimento é a principal argumentação favorável a eutanásia.
Os anseios do ser humano de infinitude e de autoafirmação leva-o à busca de meios indescritíveis para escapar dos sofrimentos inerentes à sua existência. Numa sociedade que procura exacerbadamente o prazer torna-se inviável aceitar com tranquilidade a doença e os males que ela traz consigo. Sabe-se, portanto, que nenhum ser humano está isento de tais males e também da morte.
No contexto atual, é necessário pensar muito sobre as posturas que defendem a eutanásia em vista de um bem econômico. O indivíduo com uma doença mortal, que não pode mais colaborar com a sociedade, não pode ser causa de gastos da mesma. Mas,
… o meandro econômico não deva ser o único determinante das discussões éticas e bioéticas, sobretudo se entendido no sentido redutivo que a economia adquiriu no mundo contemporâneo – disjunta da ética. (SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p. 862).
Em relação ao problema de demandas, já que as políticas públicas não conseguem incluir todos os necessitados de cuidados no sentido médico, é pertinente relacionar a questão ética e econômica, visto que
… a saúde, embora não possa ser reduzida a mera mercadoria (o que seria uma tirania em termos walzerianos), tampouco pode ser encarada independente de seus custos, razão pela qual prática médica e gestão sanitária devem ser pensadas juntas e negociadas tendo em vista o objetivo da criação do consenso entre partes em conflito. Mas o problema, neste caso, é como fazer com que as políticas de saúde sejam “inclusivas” e não excludentes, ou seja, determinadas a partir de um olhar positivo da questão polêmica dos recursos finitos ou escassos. (SCHRAMM, apud SIQUEIRA-BATISTA; SCHRAMM, 2004, p. 862).
Ao discorrer alguns pontos da eutanásia e seus desdobramentos, conclui-se que as discussões em voga são pertinentes e requerem demasiada atenção. Por um lado, porque as pessoas em estado de sofrimento recorrem a esse recurso, e por outro, porque a sociedade pensa na eutanásia como um meio de aliviar o sofrimento de quem enfrenta os males e dos que são sujeitos e envolvidos nas distintas situações.
Mais uma vez levanta-se a bandeira de defesa da vida em todo o seu itinerário, e que a morte deve acontecer de maneira natural, a seu tempo. Eticamente, ninguém pode considerar-se justo e capaz de julgar, em extremas situações quando o indivíduo, seja quem for, tem o direito de continuar a viver ou não. Todos os entes responsáveis, ou seja, o Estado, medicina e o indivíduo têm o dever de
… intervir e garantir direitos do cidadão, principalmente o direito à vida. Mais relevante do que aparência são as emoções: o cérebro, além do corpo. A mente é a “alma” da pessoa, e negar isso é negar o que há de mais profundo no ser humano e transformar alguém em mero objeto. Uma pessoa não pode se tratar sozinha; alguém deve ter essa incumbência. Deixar morrer pode ser conveniente e perverso: disfarçar a morte num eufemismo de que se fez a vontade do outro. Há demasiados direitos, mas há escassez do que é essencial: humanidade. (CUNHA, 2016, p. 77-78, grifo nosso).
Eis que distintas correntes filosóficas colocam-se em contraposição sobre o direito do estado de intervir quando a eutanásia é o desejo do próprio indivíduo. No que se propõe a defender o presente artigo, comunga-se da reflexão kantiana: “é dever manter a vida. O contrário viola a dignidade, que é fundamento da autonomia – obedecer à lei universal, e não à vontade da pessoa. Cada indivíduo, para ele, tem um fim em si mesmo”. (CUNHA, 2016, p. 77).
2.3 O SUICÍDIO E SUAS IMPLICAÇÕES SOCIAIS
Em meio à sociedade do século XXI, marcada pela desenfreada evolução tecnológica e científica, no emaranhado de informações e acontecimentos inusitados, muitos indivíduos, não encontrando saída perante os inúmeros problemas que enfrentam, enxergam no suicídio a única alternativa viável para colocar fim ao sofrimento imensurável.
No caminho aqui percorrido em busca da valorização da vida, apresenta-se a questão do suicídio, retomando os traços históricos e alguns posicionamentos para elaborar uma postura sobre tal assunto.
É preciso realizar uma investigação de maneira subjetiva e particular, visto que é no interior do homem que estão as razões que podem levá-lo ao suicídio. O filósofo Camus reflete:
O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra de arte. O próprio homem ignora. Uma tarde, ele dá um tiro ou um mergulho. De um administrador de imóveis que tinha se matado, me disseram um dia que ele perdera a filha de cinco anos, que ele mudara muito com isso e que essa história “o havia minado”. Não se pode desejar palavra mais exata. Começar a pensar é começar a ser minado. (CAMUS, apud OLIVEIRA, 2018, p. 11).
Olhando para o suicídio mais como um pensamento individual, que borbulha com os sentimentos internos do ser humano, do que meramente um evento social, é notável que
Em um universo privado, as marcas como a falta de sentidos, como a fluidez de valores, como à aspiração por clareza e coerência perante a irracionalidade do mundo contemporâneo, se tornam impulso para a morte voluntária. “O suicídio é confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos. […] Trata-se apenas de confessar que isso ‘não vale a pena’ ” (CAMUS, 2017, P. 21). É admitir que a existência está esgotada de sentidos. (OLIVEIRA, 2018, p. 11).
Aqui se tem como apoio a máxima de que Montaigne se apropria de Cícero, “De como filosofar é aprender a morrer” em vista de compreender essa vida e tudo o que a compõe, e superar todos os obstáculos, não tornando-a simplesmente um absurdo[3] mas algo que valha a pena.
Encarar a existência humana somente a partir dos males e sofrimentos que inerentes a esta conduz o indivíduo ao absurdo, fazendo-o perder todo e qualquer sentido que ela possa ter. O suicídio pode ser para o homem um caminho, uma resposta, a confissão de que não encontra motivações e sentido para continuar sua jornada.
O porquê de tudo é o aceno dessa vida sem luz, sem brilho, sem cor. Uma vida em que o tempo arrasta e a consome cada instante. O absurdo sutilmente toma conta do homem e de tudo que o rodeia. Somos conduzidos a cada dia mais para o fim de nossos dias. O tempo é um adversário persistente. O tempo que temos não depende de nós, não é submisso e nem muito menos se deixa dominar. Ao gozar dessa sã consciência, nos revoltamos e essa revolta é o absurdo. (OLIVEIRA, 2018, p. 12).
Nota-se que o suicídio não surge com o mundo moderno, mas que esse meio de colocar fim a própria existência faz parte da história da humanidade. Montaigne, ao tratar do suicídio, relata isso em seu tempo (séc. XVI):
Temos vários exemplos de pessoas, inclusive crianças, que em nossa época se suicidam para abreviar a incômodos de nonada. […] Não acabaria mais se aqui enumerasse todos os indivíduos de sexos, condições e seitas diferentes que, em tempos mais felizes, aguardaram a morte com resolução, ou a procuraram voluntariamente, e não procuraram não somente para pôr fim aos males desta vida como também, alguns, por andarem fartos dela ou porque esperavam vida melhor no outro mundo. (MONTAIGNE, 1980, p. 31).
O suicídio procura retirar todo mal que atormenta o espírito humano. Perante esse perder-se em meio às coisas do mundo e da sociedade, o filósofo francês afirma que “a coisa mais importante do mundo é saber pertencermo-nos” (MONTAIGNE, 1980, p. 117), e é preciso um grande esforço para não abandonar-se a si mesmo e perder o sentido da existência, pois um indivíduo pode perder tudo, menos o sentido que o impulsiona a viver. E esse só se encontra em si mesmo.
Para tanto, deve-se levar em consideração a defesa da vida em toda e qualquer circunstância, rejeitando todo argumento contra a vida e sempre defendendo-a, não tomando nenhuma intempérie como causa suficiente para extinguir a própria vida.
O suicídio não é um tema tratado apenas na atualidade, mas, como visto, em todo itinerário histórico. Todavia, faz-se urgente procurar entender quais motivos levam hoje em dia o crescente número de pessoas, desde crianças até os mais velhos, a buscarem o suicídio como solução dos males da vida.
Embora vendo o suicídio como um problema que surge no íntimo de cada indivíduo, é necessário propor uma reflexão no âmbito social, para encontrar quais situações têm proporcionado a busca voluntária do extermínio da vida.
O filósofo Émile Durkheim, a partir de um levantamento histórico de casos de suicídio em diversas sociedades, apresenta a questão como um fato social:
É a constituição moral da sociedade que fixa em cada instante o contingente dos mortos voluntários. Existe portanto para cada povo uma energia determinada que leva os homens a se matarem. Os movimentos que o paciente executa e que à primeira vista parecem exclusivamente o seu temperamento pessoal constituem, na realidade a continuação e o prolongamento de um estado social que manifestam exteriormente. (DURKHEIM, 1978, p. 184).
É preciso tratar da questão do suicídio para além do indivíduo, como mostra Durkheim: “A causa produtora do fenômeno escapa necessariamente a quem só observa os indivíduos; porque ela é exterior aos indivíduos. Para a descobrir, é necessário ir além dos suicídios particulares e aperceber o que determina a unidade destes”. (DURKHEIM, 1978, p. 201).
Não se pretende aqui apresentar soluções e regras para extirpar o problema do suicídio na sociedade atual, visto que esse perpassa toda a história da humanidade. O intuito é refletir e repensar os rumos que a sociedade do século XXI vem tomando, e que consequentemente desembocam na perda de sentido de viver.
O mundo atual oferece um aparato de pertences e oportunidades, de informações e tecnologias, que enchem os indivíduos de coisas, mas os conduzem à perda do sentido da vida. Todo arcabouço oferecido não é capaz de satisfazer os desejos. Vive-se num contexto de efemeridades, no qual tudo é relativamente passageiro e, não encontrando nenhum sustento que seja sólido, o ser humano coloca-se diante da vida tendo-a como um mero absurdo e, não encontrando razão para viver, o mais oportuno é o suicídio.
3 CONCLUSÃO
Após o caminho aqui percorrido, elencando os posicionamentos e discordâncias nas questões do aborto, eutanásia e suicídio e as implicações sociais e éticas que estas causam, conclui-se que faz-se urgente uma reflexão séria que ultrapasse simplesmente o campo jurídico e econômico.
A vida, seja de um nascituro ou de um enfermo, ou em qualquer outra fase de sua existência deve ser sempre pensada e valorizada no seu sentido primeiro, como um bem precioso que cada ser humano carrega em si.
Nem mesmo a ciência e a tecnologia em sua abrangência e avanço nos dias atuais podem se considerar superiores a dignidade humana para manipulá-la demasiadamente. Não se apresenta aqui como contrário a ciência e tecnologia, porém um alerta de que, como já se percebe no seu desenrolar, que elas não são capazes de solucionar todos os problemas, como foi proposto e sonhado.
Refletir sobre a vida humana e sua dignidade deve ser o cerne de toda e qualquer discussão ética. Para tanto, nesse contexto conturbado, de perda de valores e sentido, parece que o campo ético foi reduzido apenas a um conceito que não mais se aplica para as relações e concretude do bem agir.
Assim, como intuito deste presente artigo, uma reflexão primaria que conduza a uma abertura na qual se possa repensar tantas atitudes desenfreadas que massacram e desvalorizam a vida de cada ser humano. Nenhum ser humano pode-se considerar maior e autossuficiente para dar-se o direito de eliminar a vida de outro ou até mesmo de retardá-la demasiadamente.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bossi e Ivone Castilho Benedetti. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
BATISTA, Romulo Siqueira; BATISTA, Rodrigo Siqueira. De como filosofar é aprender a morrer: o pensamento de Michel e Montaigne com o pressuposto na discussão sobre a morte e o processo de morrer na prática médica. Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 10, n. 1, p. 9-18, 2002.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. In: Os Pensadores. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 163-202.
PORTUGAL, Guilherme Augusto. A morte nos “Ensaios” de Montaigne: a filosofia como um aprender a morrer e um saber bem viver. 2019. 73f. Trabalho de Conclusão de Curso (Curso Livre de Filosofia) – Instituto Filosófico São José. Campanha, 2019.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. In: Os pensadores. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
NERI, Demétrio. A bioética em laboratório. São Paulo: Loyola, 2004.
OLIVEIRA, Eduardo José. O suicídio como problema filosófico. 2018. 21f. Artigo (Curso de Licenciatura de Filosofia) – Instituto São Tomás de Aquino, Faculdade dos Religiosos de Filosofia e Teologia. Belo Horizonte, 2018.
______. Uma angustiante reflexão sofre a morte. 2017. 11f. Ensaio crítico (Curso de Licenciatura de Filosofia) – Instituto São Tomás de Aquino, Faculdade dos Religiosos de Filosofia e Teologia. Belo Horizonte, 2017.
PEREIRA DA CUNHA, Maria C. Santini. Eutanásia: dilema moral em perspectiva filosófica. In: (RE) PENSANDO DIREITO. Revista do Curso em Graduação em Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo, EDIESA, v. 6, n. 11, jan./jun. p. 67-79, 2016.
RAMPAZZO, Lino. Antropologia: religiões e valores cristãos. São Paulo: Paulus, 2014.
SIGUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin Roland. A filosofia de Platão e o debate bioético sobre o fim da vida: interseções no campo da Saúde Pública. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 3 mai./jun., p. 855-865. 2004.
[1] Formado no Curso Livre de Filosofia do Instituto Filosófico São José, Seminário Diocesano Nossa Senhora das Dores, Campanha – MG.
[2] Michel de Montaigne (1533-1592): filósofo francês do século XVI. É considerado um filósofo humanista e um cético fideísta. Inaugura o estilo literário de Ensaios (em uma única obra discorre sobre inúmeros assuntos).
[3] O termo absurdo aqui é tomado no sentido proposto por Albert Camus. “Camus concebe o Absurdo como o que é lógica e axiologicamente inconveniente (segundo a etimologia grega do termo átopon, que ao pe da letra significa “fora do lugar”) e considera-o oriundo de um “divórcio” entre as expectativas da razão e a feia realidade dos fatos, ou então do contraste entre opacidade indiferente do universo e o desejo humano de felicidade e clareza: “ O mundo, em si, não é racional: é tudo o que se pode dizer. Mas o A. é o confronto desse irracional com o forte desejo de clareza, cuja reivindicação ressoa no mais profundo do homem. O A. tanto do homem quanto do mundo é, por enquanto, o único elo entre eles” (o mito de Sísifo, 1942, trad. it., Bompiani, Milão 1980, p. 23).” (ABBAGNANO, 2007, p. 07).
2025 - Todos os Direitos Reservados
Desenvolvido por Grupo Glorium